Wagner Lemos
Doutor em Literatura (USP) e
professor da UNEB Euclides da Cunha
Instagram: @prof_wagnerlemos
O Novo Testamento, em especial, nos quatro Evangelhos e o livro de Atos dos Apóstolos, é um relicário de sabedoria, muitas vezes pouco compreendidas. De fato, interpretação de texto é algo que não faz mal a ninguém. Há até quem diga que a salvação de nosso país passa, inevitavelmente, por conhecimento histórico, consciência de classe e interpretação de texto.
Na esfera dos assuntos metafísicos e de sabedoria de que trata o Novo Testamento, aprecio bastante as partes em aparece o pobre nazareno cheio de intrepidez e inteligência. Um moço galileu cuja força estava na palavra e no exemplo. Daí, frequentemente, me pego a me pensar como parte de sua plateia sob o sol do Oriente Médio. Visto-me de imaginação e me transporto para estar diante de um rapaz judeu corpulento, já que era trabalhador braçal, um carpinteiro da marcenaria de José. Ali observo sua tez escura, sua pele queimada pelo sol do deserto, e escuto suas palavras. Mais do que isso: deslumbro-me diante de seus milagres. Devo dizer que não tenho um conceito muito semelhante ao da maioria das pessoas acerca do que é milagre.
Um dos milagres que sempre mexeu com meus pensamentos é o da multiplicação dos pães e dos peixes. Tenho a ousadia, a liberdade, de imaginar esse feito de outra maneira. Causa-me alegria ler as palavras de sua narrativa de um jeito que considero até mais bonito. Sem tirar uma vírgula, mas apenas observando a história com mais beleza.
Conta-se que o mestre pregava à multidão. Mesmo nas adversas condições, a multidão não arredava pé e se deixava ficar a ouvir as palavras do moço galileu. No avançado da hora, os discípulos mais íntimos, cheios de pragmatismo, aconselham que ele despeça os ouvintes, pois não havia comida para todos e que cada um deveria pegar seu rumo de casa. A isso teria o pregador respondido: “dai-lhes vós de comer”. Isso esbarrava, porém, com a realidade de que havia somente com esses seguidores cinco pães e dois peixinhos. Esses, sob a palavra do mestre, começaram a ser repartidos, o que causou um torrencial de “multiplicação” de comida entre as pessoas. Na descrição se diz que houve tanta comida que sobraram cestos.
Entendo esse milagre de multiplicação de um jeito diferente, porém não menos belo. Sabemos que, culturalmente, as pessoas ao saírem de suas casas costumam levar consigo algo para comer, mesmo hoje em que temos opções de entrega e pontos de alimentação à disposição. Não havia essas possibilidades para os ouvintes naquela multidão. Assim, cada núcleo familiar deveria ter levado algo consigo. E, do mesmo modo que atualmente, cada um se alimentaria conforme as suas posses. Uns com fartura, outros minguada comida e alguns, talvez, não tivessem nada. Não faltam exemplos nos evangelhos de quão variado em todos os sentidos era o público daquele Rabi. Muito provavelmente, os mais abastados estavam embebidos em egoísmo e não tinham o interesse da partilha. Típico da espécie humana.
Contudo, o nazareno fez um milagre. Mostrou como se deveria fazer. Determinou que seus apóstolos lançassem mão do alimento que tinham à disposição e dividissem. Convencessem e convertessem pelo exemplo. Assim se fez. Aquilo, imagino eu, fez que dureza egoísta se render ao gesto de solidariedade e aqueles ali estavam dividissem. Havia dentre os presentes alimento bastante para todos, com direito à sobra. Entretanto, era necessário o gesto de partilha se multiplicar.
Aos que me perguntam se esta não é uma visão muito racional de um milagre, costumo responder com uma pergunta retórica. Para o Criador que encheu mares, fez montes e estrelas, qual é o maior e mais duradouro milagre: fazer mais pães e peixes ou quebrar o egoísmo humano?